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Taxa SELIC é a segurança dos juros moratórios

20/01/2023

Como em um triângulo, onde o vértice formado entre dois lados permite inferir onde deve estar o terceiro, a interpretação e aplicação de um Código Civil deve buscar uma lógica sistemática. Isto seguramente será tomado em consideração no julgamento do REsp 1795982/SP, no âmbito da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Pautado para fevereiro, os eminentes Ministros e Ministras terão a oportunidade de desatar controvérsia sobre a interpretação do art. 406 do Código Civil (CC). Ao deixar de pagar uma dívida, o dispositivo impõe ao devedor que pague juros ao credor no valor “segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. Mesmo após vinte anos de vigência, o trecho é motivo de aceso debate.

Os juros moratórios são devidos pela privação de certo recurso que o credor deveria receber, e não recebeu. Como espécie de frutos civis, durante o período da inadimplência os juros pingam periodicamente da quantia devida, sem a diminuir. Como o próprio nome designa, o instituto objetiva impor um ônus ao atraso, ou ao inadimplemento, do devedor, que deverá arcar com o valor suplementar ao débito, tanto maior seja a sua mora.

A leitura do art. 406 à luz da metáfora do triângulo e da própria função dos juros moratórios parece deixar poucas dúvidas sobre sua correta compreensão. O dispositivo aplica-se no silêncio das partes. Sendo este o caso, a taxa devida será equivalente à SELIC, como previsto na lei 9.065/95 e em outros dispositivos. A despeito disso, razões respeitáveis levaram a maior parte da doutrina brasileira a colocar-se contra esta interpretação linear.

Já na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, o grupo de juristas ali reunidos aprovou o enunciado n. 20, em sentido contrário ao que dispõe a lei. Assentou-se que “A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a [de] um por cento ao mês”. Em sua justificativa, o grupo ponderou que o uso da SELIC não era seguro porque a taxa muda com frequência, nem era operacional porque ela embute juros e correção monetária.

A despeito disso, não foi aparentemente considerado que o legislador previamente examinou os ônus e bônus envolvidos, e fez sua opção – legítima e distinta da solução proposta pelo enunciado. O enunciado tomou como um problema o uso da SELIC porque ela é uma taxa móvel. Porém, não há qualquer dificuldade para o seu cálculo; ao contrário, facilita-se, porque a SELIC já embute correção monetária, dispensando o complexo mecanismo de corrigir o valor e a ele somar os juros. Seja como for, mais do que por uma questão operacional, o texto legal escolheu atrelar os efeitos da mora no tempo às taxas básicas no juros no período, e não a um número fixo.

Ao fazer incidir a SELIC sobre um débito inadimplido não se concede ao credor uma espécie de aplicação financeira com juros de 1% ao mês, mais correção. A opção pela SELIC significa que o legislador quis fixar uma taxa móvel que não se tornasse excessiva ou minúscula ao longo das sucessivas curvas inflacionárias, sem prejuízo de as partes, em seus contratos, definirem uma taxa distinta.

Esta mesma opção pode ser vista em legislações que serviram de inspiração para o Código Civil brasileiro. Na França, por exemplo, os juros moratórios são revisados periodicamente pelo Ministério da Economia. Na Itália, embora o Codice Civile mencione uma taxa fixa, a mobilidade foi garantida pela possibilidade de alteração anual por ato do Ministério do Tesouro.

Para além disso, a escolha legislativa tem sólidos fundamentos econômicos. Em nota técnica emitida sobre o tema, o economista Gustavo Franco alerta que “Regras para a mora não deveriam ter a sua razoabilidade dependente das condições meteorológicas”. Para ele, o uso de taxas fixas arbitrárias são “escombros de uma civilização perdida”, algo não mais admitido pela ciência econômica. Estipular que a taxa de juros moratórios deve ser de 1% ao mês seria como lançar mão “de um número arbitrário, um juros de algibeira”, que tanto poderia ser 1% ao mês, como “uma libra de carne, ou duas”, sendo algo exótico, inadequado e inútil.

A despeito destes fundamentos, a doutrina sustenta que é função da SELIC fixar a taxa devida aos investidores de títulos públicos, o que não seria compatível com os juros moratórios. Porém, o seu uso se dá por referência, à luz do fato de que ela é um instrumento para controle da inflação. Assim, considerar que SELIC não pode ser juros moratórios seria como recusar que o câmbio ou um índice de inflação possam ser aplicados para se chegar ao valor de obrigações de toda natureza, o que não é verdade.

Essas circunstâncias permitem refletir sobre o discurso da segurança, no contexto da lide em torno dos juros. As duas posições em jogo argumentam em favor deste ponto, mas a suposta segurança de uma taxa fixa mensal não pode ser obtida fora da lei, nem fora do contexto econômico. Se o cenário econômico for de baixa inflação, o percentual de 1% ao mês pode se revelar excessivo, distante da realidade de aplicações financeiras ordinárias. Se for de alta, o mesmo percentual pode se revelar baixo, não alcançando o próprio objetivo dos juros moratórios. Daí se justificar a escolha legítima pela SELIC.

Tudo isto resta ainda mais claro ao ter-se em conta que o STJ também firmou entendimento, na Corte Especial, em favor da SELIC. Ainda que existam acórdãos anteriores em sentido contrário, é bastante significativo o fato de a Corte, desde então, ter passado a inadmitir embargos de divergência sobre o tema, justamente porque entendeu que não há mais dissenso a ser resolvido.

Apesar disso, os eminentes Ministros e Ministras avaliarão o tema novamente, agora tendo em vista um possível distinguishing quanto a manutenção ou não da SELIC na hipótese de responsabilidade civil extracontratual, e a recalcitrância dos tribunais locais, que não raro insistem em não aplicar a jurisprudência firmada sobre o tema.

Quanto ao primeiro ponto, o regime dos efeitos da mora nos contratos e nas obrigações extracontratuais tem previsão expressa no Código Civil. Não tendo havido distinção quanto à taxa de juros, ela deve ser aplicada do mesmo modo nos dois casos, como tem decidido o STJ. Pretendendo criar uma regra geral, o Código Civil não diferencia os efeitos do incumprimento quanto a este ponto, ressalvada às partes a possibilidade de estipularem expressamente os juros moratórios ao firmarem seus negócios. A unificação dos juros de mora, portanto, prestigia a opção legislativa e a conquista histórica da redução da margem de arbitrariedade na sua fixação, ao contrário do que ocorria na origem do uso dos juros como consequência da mora, como relatado por Zimmermann.

Quanto ao segundo ponto, este talvez seja o momento de a Corte, ao examinar novamente a matéria, aprovar súmula com o objetivo de proibir julgamento em sentido contrário. Embora o tema encontre-se pacificado há quase 15 anos, curiosamente o entendimento contrário aprovado na I Jornada de Direito Civil parece se impor mais do que compreensão do Superior Tribunal de Justiça. Esta circunstância recomenda que o verbete seja fixado, com o que a jurisprudência será mantida estável e coerente, dando-se também maior publicidade à comunidade jurídica.

A SELIC representa segurança: econômica, porque está atrelada às curvas de inflação; e jurídica, porque inegavelmente foi a escolha do legislador, ratificada pelo STJ. À luz disso, não é razoável criar dúvidas quanto a metodologia indicada na legislação para o cálculo dos juros moratórios. Se reafirmar sua jurisprudência, a Corte estabelecerá marco importante sobre o tema e as bases necessárias, quem sabe, para a construção de uma plataforma unificada de cálculos judiciais pelo Conselho Nacional de Justiça, o que economizará tempo e recursos de advogados, juízes e usuários do Poder Judiciário.

Publicado por Migalhas